De(s)norte
- Francisco Gs Simões
- 23 de abr. de 2019
- 4 min de leitura
Adiamento
Fui adiando. Apaguei as luzes, sem saber mais como se escrevia desorganização. Desorganização e adiamento da minha própria reflexão. Entendo então que a cortina que se vai esfumando, pertence a um apagão que nem eu próprio previa. Tinha 27 ou teria 25? Parecia que tinha 15, com a alma estampada nos ossos, que pareciam fortes, mas latejavam constantemente. Este encontro está destinado para todos aqueles que sabem ter paciência com a própria intimidade. A quem a espera recupera a exultação de nos perdermos, sem nunca sairmos do lugar. E fui adiando. Coloquei a mesa, com vários pratos. Nunca soube construir essa casualidade concertada, que é receber alguém sem ter um registo desalinhado. Em tempos, lia numa revista cor de laranja, (ou pela menos assemelhava-se a julgar pela cor da convidada) “ gosto de receber os convidados com uma mesa farta”. Não concluí o que incluiria esse menu divino, nem sequer a cor do prato de sobremesa consegui descortinar. Entendi que não era assunto para mim e que haveria outras formas de tornar a minha mesa tão farta, quão verdadeira e por isso fui adiando. Compreenderia eu algum dia, que é dentro dessa verdade tão chamativa, tão pungente, que residiria para sempre a minha conclusão daquilo que eu não previra? Um mundo inteiro a desejar a transparência durante pouco mais de 5 minutos, pouco mais de uma hora, pouco mais do que a eternidade. Tenho mais alguns anos, entre aqueles que ainda virão certamente e aqueles que ficaram para trás. Nessa altura, cabia a esperança dentro de um prato de sopa e isso reproduzia-se em sorrisos alegres, cobertos de espinafres muitas vezes presos dentro dos dentes, sem vergonha no riso. Nesse mundo, eu conquistaria um desapego inerte pela minha própria construção. Tão soturno, tão longínquo, tão escuro. Tão triste. Sem vergonha na própria tristeza. É que um mundo todo tem a força de um inferno, comenta a Clarice em voz baixa, como se isso me aquecesse a alma, o coração… O Outro. Sim, o Outro. Nenhum haveria de ficar impávido e sereno a alguma reação. Era necessário criar uma adequação certa, por dentro das calças, por dentro das veias metidas e conturbadas. Por entre a carne viva de quem se queimou tanto, nessa espera contínua. Eu adiei porque sempre tive pressa. Na psicologia, o sempre e o nada não existem, mas eu sempre me dei mal com teorias concretas e regras desvendadas no final do jogo. Eu sempre adiei, porque tive medo de não chegar a tempo. Entretanto, nos entretantos da minha desorganização, esforcei-me por correr fora do registo de uma velocidade empática. Imaginem que ia a cavalo, quando toda a gente ia a pé. Imaginem que ia num cavalo grande e chamativo, também ele inconsciente, também ele morto. Íamos muitas vezes lado a lado, outras já o seguia bem à frente, mesmo que isso pareça mentira. Aqui jaz a verdade: quis sempre fazer tudo mais depressa, a ver se ainda me restava tempo para fazer aquilo onde realmente queria despejar a minha energia. Era a gestão do concreto dos outros que fazia. Nos meus termos. Antes disso, íamos num trote bastante rápido o suficiente para ninguém disparar, e muito pouco lento, a ver se ninguém se juntava. Muitas das vezes, voltávamos para trás, porque a solidão também é importante, mesmo que voltássemos várias vezes, com a ilusão que ninguém daria por isso. E já esgotados, aparecíamos de sorriso que conta a história de um feriado. Nos meus termos. Na minha carta rogatória, no meu decreto, na minha lei. Eu fui a pessoa mais antiga que conheci. E fui adiando esse reconhecimento, porque no caos reside alguma novidade e às vezes peço que seja esperança. Não tenho pressa em viver, mas alimento-a. De uma janela, numa mesa repleta daquilo que sempre fiz questão de contar. Volta e meia, ouço uma ou duas músicas que me remetem para um outro L.S. que será encontrado, como se de outra perna se tratasse. Banhado a merda, enquanto ainda te espero. Ou L.M. Menti. Não consegui adiar e muito menos esperar-te. Interminavelmente fico por aqui, sem me calar, sem colocar na mesa aquilo que verdadeiramente eu queria oferecer. Ou L.G. Alegria, daquela que se sente, daquela que se partilha, daquela que nos faz saltar de quarto em quarto, sem receio de ver partir. Ou L.M. Menti mesmo, por inúmeras vezes. Menti porque não sei adiar e porque quem me conhece, não sabe o que aconteceu. Eu sei. Por aqui, pelo meio da insatisfação face a um mundo que não entendo. No final, percebi finalmente que era eu o complexo. Mais ou menos, surpreendo-me todos os dias, por aquilo que vou dizendo, por aquilo que vou fazendo, mas não por aquilo que vou sentindo. No início era apenas o universo; e isso satisfazia-me, dentro de cada layer, dentro de cada silo, preso numa prateleira qualquer. Se pudesse adiava mesmo. Jogava bem para longe essa sorte que é de não conseguir controlar a alma, como se de um guerreiro lusitano se tratasse. A intenção de sermos um. Não decorrer da capacidade de nos reconhecermos. Sabemos que seremos mais performativos, se nos entregarmos a essa liberdade, em compasso ritmado, com energia pulsante. Quando nos perdemos e nos desencontramos, um do outro, dentro de nós próprios, um do outro, não entendemos mais, desorganizados. Não interessa a ninguém. Nem a nós próprios e cultivamos como se fosse um animal sem patas e com comida eterna se tratasse. Já chegaste?
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