Crónicas ao Sábado
- Francisco Gs Simões
- 13 de abr. de 2019
- 3 min de leitura
affectus operta
Decidimos continuar a festa desta forma mais ao menos perfeita. Uma jarra com flores tem o simbolismo que lhe quisermos dar, mediante a cor, a postura e a forma das flores.
Estas são de plástico. Não se traduzem em memórias, não absorvem o pó que trazem de cada vez que entram cá dentro, nem atraem visitantes. São apenas um sinal coerente de um futuro que aponta para um estômago repleto de ar e sem espaço para atrair aquilo de que a alma não é alimentada – a solidão.
Invariavelmente acabo por continuar expectante de que tudo encontre um equilíbrio perfeito - entre aquilo que pode ser feito de forma tão inocente e aquilo que existe nesse vazio que é o nosso sofá do IKEA. Feito das entranhas da nossa criação espalhada pelas séries que vamos vendo, pelos laços que vamos extinguindo, pelo cansaço que é mantermos e alicerçarmos relações saudáveis e prazerosas. Entre aquilo também consideramos a surpresa e a coerência, com a cadência matreira e variável. Entre aquilo que seria expectável e aquilo que são as nossas necessidades. Entre a vida prosaica e a capacidade críptica de não deixarmos entrar quem nunca cá esteve, sem fornecermos instruções a quem por cá ainda se mantém.
Entre o despertar e o acordar
Entre a cidade que já não nos reconhece
Entre a leveza daquele sorriso em carne viva, que ainda nos faz levitar sem recurso à meditação.
Aqui e ali, haverá alguma verdade disfuncional, que explique a seguinte equação: o sorriso passa a ser a tua entrada para o mundo e o mundo passam a ser as tuas entranhas. De olhos bem fechados, como se fosse uma ilusão criada pelo Kubrick, em que nos perdemos e nos encontramos, mas nunca permanecemos sozinhos. Ou inteiros. Ou inertes. Tudo se transforma sem medos. Alturas há, em que gostaria de conseguir sair sozinho dessa construção, mas no fim de contas, estou amarrado a algo real.
O Herberto Helder diria o seguinte, se pudesse. Se te visse.
“A experiência é uma invenção. A memória é improvável.”. De certo modo, sentindo-me um curador de uma exposição neo-realista, continuaria a inventar alguma explicação mais ao menos lógica para traduzir a intenção que tenho em permanecer. Em chamar. Em calar, mais ao menos todos os dias.
Mergulho nesse sorriso, de pulmões bem abertos, como se de uma música dos Beach House se tratasse. Não sei bem onde me leva, mas entendo pela criação das ondas que giram e contornam, que afinal não terá um fim. Dentro dessas entranhas, nenhum de nós alguma vez esteve sozinho. Apenas mais despercebidos daquilo que somos, apenas mais desatentos daquilo que queremos. Apenas mais sozinhos.
Eu queria mergulhar nesse sorriso rasgado, nessa ilusão de que algum dia me aguentaria inteiro.
“E quando uma criatura não atinge as garantias da sua criação” diria o Herberto, “não encontra provas da sua existência. A realidade é apenas o que se propõe como tal. Mas devemo-nos munir sempre de uma ironia que coloque dubitativamente a nossa mesma proposta. A vida assenta na tensão que as desavindas propostas de verdade estabelecem entre si.”
A cripticidade da comunicação, dentro desse retalho que é a manta de signos que vamos expondo sem grande significado para o outro, mas que nos seguram todos os dias. É esse sorriso que ainda transporta alguma coisa para a nossa existência. Para a minha.
Luís Miguel da Silva
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