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Cartas de Amor - Mário Simões

só um amor incompleto pode ser romântico. 

Woody Allen


Gosto de seguir olhares e não pessoas. As pessoas levam-me onde elas querem os olhares levam-me até onde eu posso ir.

Foi assim que conheci a Rita. Não sei se vim do olhar até ela ou se segui o seu olhar até mim. Talvez nem uma coisa nem outra, talvez os nossos olhares se tenham cruzado por acaso ou o acaso tenha tropeçado nos nossos olhares.

Talvez porque somente o olhar me interessou, nunca a Rita mostrou o menor interesse na minha pessoa, pelo menos naquilo que socialmente as pessoas entendem por interessar, que é tão somente desejar algo que posso dar alguma satisfação.

E contudo, apesar deste desinteresse mútuo, porque nada lhe queria dar e receber talvez apenas um sorriso que me desse a certeza que o olhar me olhava. Contudo dizia eu, estávamos cada vez mais próximos um do outro. E, mesmo quando não estávamos, não existia aquela sensação de estar a mais que é como quem diz, de perda.

A sensação de não estar era afinal boa, era uma sensação de liberdade que nos aproximava bem mais do que poderíamos imaginar e de que eventualmente queríamos. Era como se existíssemos apenas para nós sem a necessidade de existirmos um para o outro. Poderia chamar-se a isto um sentimento fraterno, mas era um sentimento bem físico, porque o olhar transportava não a ilusão de inexistência do desejo, mas o desejo em si bruto como um vulcão forte como a ventania que fazia balançar o olhar que contudo não deixava de seguir o outro olhar.

Um dia, porque há sempre um dia, o olhar da Rita mudou. Não mudou a Rita que continuava bela debaixo da sua vestimenta preta que lhe realçava os contornos do corpo. Nessa altura, até se aproximou mais de mim, estranhamente correspondeu ao toque que tantas vezes tinha rejeitado com a desculpa que não gostava que a agarrassem. O seu olhar mudou.

Levei pelo menos uma noite a pensar onde deveria procurar o seu olhar, ou se devia simplesmente tentar recuperá-lo.

Quando o sol nasceu sob uma temperatura que criava gelo nos vidros dos carros e nas plantas selvagens que teimavam e romper da terra e procurar a luz, saí à rua. Aqueci as mãos nos bolsos do velho blusão esverdeado e rasgado pelo uso e não pensei mais na Rita.

Entre o café e o bolo de arroz que me lembrava a infância descobri um olhar...fui atrás dele.

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